Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe
transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu
de lhe dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos
trinta e cinco anos de casados, mas é uma primeira vez que pode também ser a
última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua
atitude e não sei se me recuperarei.
Tudo por causa de sua teimosia. Você
insiste, contra todas as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de casimira
inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu
pai, você gosta dele, quer homenageá-lo. Mas com casimira, Matilda. Com casimira
inglesa, Matilda. Que horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casimira
inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A
tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O
trabalho de competentes operários. E sobretudo a tradição, a qualidade. Esse é
o tecido que está em questão, Matilda. A casimira inglesa.
Há muitos aspectos nesse problema, mas
quero deixar de lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o
preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de
tecido importado custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário,
vamos omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casimira inglesa, Matilda. E
da casimira eliminemos aquilo que possa entre nós gerar controvérsia – por
exemplo, a conveniência de dar a um homem que sempre se vestiu mal, que não dá
a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão
sofisticado, tão distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a
sofisticação da casimira. Vamos abordar outro tópico.
A duração.
Sabe quanto tempo pode durar a casimira
inglesa, Matilda?
Muito tempo, Matilda. Muito tempo.
Disse-me o vendedor – porque tomei o cuidado de colher essas informações, não
estou polemizando pelo prazer de polemizar, estou querendo que você raciocine
comigo – que um paletó de casimira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças (
e como há traças na casa de seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar
anos, décadas, séculos, talvez (ele falou em roupas guardadas desde o século
XVIII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, mesmo que esteja
vendendo um fino artigo, como é o caso).
Isso, a casimira inglesa. Agora, seu
pai.
Ele está fazendo noventa anos. É uma
idade respeitável, e não são muitos os que chegam lá, mas – quanto tempo ele
pode ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele chegue ao centenário, mas, francamente,
Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número
redondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos centenários há
no mundo? E as chances de seu pai ser um deles. Aquela tosse, a falta de ar...
Não sei, não. Mas mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele viva vinte anos, a
casimira sem dúvida durará mais. E aí, depois que o sepultarmos, depois que
voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e dos
amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele,
que são poucas e sem valor – à exceção de um casaco confeccionado com o corte
de casimira que você pretende lhe dar. Você, em lágrimas, dirá que não quer
discutir o assunto, mas eu terei de insistir, até para seu bem, Matilda; os
mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas
hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho
fazendeiro, verdade que arruinado, despreza coisas como comprar e vender, ele
acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação. Dar? A quem? A um pobre?
Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase
característica de seu pai: tem de matar esses vagabundos. Essas hipóteses todas
estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua voz
súplice: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não , Matilda. Em primeiro
lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de me
lembrar, chamando-me de gordo porco, você lembra? Você achava graça, dizia que
era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava falando sério. Gordo
porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e tantos anos. Mas mesmo que o casaco
me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe que isso seria capitulação
final, Matilda. Você sabe que com isso eu estaria renunciando para sempre à
minha dignidade.
O casaco ficaria pendurado em nosso
roupeiro, Matilda. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que
seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como remete
a uma outra interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as joias da sua
mãe, que ele guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
Estou partindo, Matilda. Deixo o meu
endereço. Como você vê, estou indo para longe, para uma pequena praia da Bahia.
Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casimira.
Moacyr Scliar. Contos reunidos. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
01. (Uerj 2014) Ele está fazendo noventa anos. É uma idade
respeitável, e não são muitos que chegam lá, mas − quanto tempo ele pode ainda viver?
No contexto, a pergunta feita pelo narrador está diretamente ligada à
informação acerca da idade do pai de Matilda.
No entanto, entre a informação e a pergunta, o narrador enuncia duas
ponderações que possuem a função de:
a) desfazer a certeza de que a fala é
impensada
b) amenizar o choque que a indagação pode
trazer
c) reiterar a ideia de que o presente é
equivocado
d) enfatizar o realismo que o remetente
quer mostrar
02. (Uerj 2014) para lhe transmitir aquilo que a contrariedade
(para não falar indignação) me impediu de dizer de viva voz.
Na sequência em que se encontram, as palavras grifadas configuram o
seguinte recurso:
a) gradação
b) enumeração
c) ambiguidade
d) generalização
03. (Uerj 2014) Apesar de enunciado em primeira pessoa,
o texto inclui, implícita ou explicitamente, outras vozes.
Um exemplo da presença explícita da fala de outro personagem no texto é:
a) Que horror, Matilda.
b) A tecnologia de um país que, afinal,
deu ao mundo a Revolução Industrial.
c) tem que matar esses vagabundos.
d) Lá ninguém usa casimira.
04. (Uerj 2014) O conto de Moacyr Scliar adota a forma
de uma carta, gênero que tem convenções específicas. Uma das marcas que
permitem associar esse texto a uma carta é a presença de:
a) vocativo
b) narrativa
c) confissão
d) argumentação
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Gabarito:
Resposta da questão 1: [B]
As orações
“É uma idade respeitável, e não são muitos que chegam lá” suavizam a expressão da ideia seguinte, amenizam o choque que a
indagação do narrador pode trazer a Matilda.
Resposta da questão 2: [A]
Gradação é um aumento ou diminuição
gradual, passo a passo. Na frase em destaque, de “contrariedade” a
“indignação”, o grau de descontentamento é aumentado de um nível a outro.
Resposta da questão 3: [C]
“Tem que
matar esses vagabundos” é uma fala de outro personagem reproduzida pelo
narrador: o pai de Matilda.
Resposta da questão 4: [A]
De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o vocativo pode ser
definido como a “forma linguística (usualmente um substantivo) que expressa, no
discurso direto, aquele a quem o emissor se dirige”. Desse modo, é muito comum
nas cartas, e é representado no texto pela personagem “Matilda”, a quem o
narrador/emissor se refere.
Li todo o artigo e gostei muito. Sou um cidadão de 84 anos mas ainda tenho bom gosto, minhas roupas, vestimenta, Uso casimira inglesa.
ResponderExcluirGostei demais do artigo!Valeu.
Que legal! Fico feliz em saber que alguém tão elegante gostou da publicação. Muito obrigada!
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