terça-feira, 24 de julho de 2018

Os usos da casimira inglesa – Moacyr Scliar

Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de lhe dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e cinco anos de casados, mas é uma primeira vez que pode também ser a última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundamente magoado com sua atitude e não sei se me recuperarei.
Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra todas as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de casimira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me dizer: é seu pai, você gosta dele, quer homenageá-lo. Mas com casimira, Matilda. Com casimira inglesa, Matilda. Que horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casimira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho de competentes operários. E sobretudo a tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, Matilda. A casimira inglesa.
Há muitos aspectos nesse problema, mas quero deixar de lado tudo o que me parece menos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou homem de poucas posses e que um corte de tecido importado custaria bastante, mas vamos admitir que isso seja secundário, vamos omitir esse detalhe; fixemo-nos na própria casimira inglesa, Matilda. E da casimira eliminemos aquilo que possa entre nós gerar controvérsia – por exemplo, a conveniência de dar a um homem que sempre se vestiu mal, que não dá a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão sofisticado, tão distinto. Não, não vamos discutir isso, não vamos discutir a sofisticação da casimira. Vamos abordar outro tópico.
A duração.
Sabe quanto tempo pode durar a casimira inglesa, Matilda?
Muito tempo, Matilda. Muito tempo. Disse-me o vendedor – porque tomei o cuidado de colher essas informações, não estou polemizando pelo prazer de polemizar, estou querendo que você raciocine comigo – que um paletó de casimira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças ( e como há traças na casa de seu pai, Matilda, como há traças lá), pode durar anos, décadas, séculos, talvez (ele falou em roupas guardadas desde o século XVIII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, mesmo que esteja vendendo um fino artigo, como é o caso).
Isso, a casimira inglesa. Agora, seu pai.
Ele está fazendo noventa anos. É uma idade respeitável, e não são muitos os que chegam lá, mas – quanto tempo ele pode ainda viver? Sim, todos nós desejamos que ele chegue ao centenário, mas, francamente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número redondo, é um espaço de tempo expressivo, um século, mas quantos centenários há no mundo? E as chances de seu pai ser um deles. Aquela tosse, a falta de ar... Não sei, não. Mas mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele viva vinte anos, a casimira sem dúvida durará mais. E aí, depois que o sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e dos amigos, e dos conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor – à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casimira que você pretende lhe dar. Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o assunto, mas eu terei de insistir, até para seu bem, Matilda; os mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arruinado, despreza coisas como comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é a suprema degradação. Dar? A quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase característica de seu pai: tem de matar esses vagabundos. Essas hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua voz súplice: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não , Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de me lembrar, chamando-me de gordo porco, você lembra? Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava falando sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e tantos anos. Mas mesmo que o casaco me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe que isso seria capitulação final, Matilda. Você sabe que com isso eu estaria renunciando para sempre à minha dignidade.
O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, Matilda. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como remete a uma outra interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as joias da sua mãe, que ele guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Como você vê, estou indo para longe, para uma pequena praia da Bahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casimira.
                          
Moacyr Scliar. Contos reunidos. São Paulo: Cia das Letras, 1995.


01. (Uerj 2014)  Ele está fazendo noventa anos. É uma idade respeitável, e não são muitos que chegam lá, mas − quanto tempo ele pode ainda viver?

No contexto, a pergunta feita pelo narrador está diretamente ligada à informação acerca da idade do pai de Matilda.
No entanto, entre a informação e a pergunta, o narrador enuncia duas ponderações que possuem a função de:
a) desfazer a certeza de que a fala é impensada   
b) amenizar o choque que a indagação pode trazer   
c) reiterar a ideia de que o presente é equivocado   
d) enfatizar o realismo que o remetente quer mostrar   
  
02. (Uerj 2014)  para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar indignação) me impediu de dizer de viva voz.

Na sequência em que se encontram, as palavras grifadas configuram o seguinte recurso:
a) gradação   
b) enumeração   
c) ambiguidade   
d) generalização   
  
03. (Uerj 2014)  Apesar de enunciado em primeira pessoa, o texto inclui, implícita ou explicitamente, outras vozes.
Um exemplo da presença explícita da fala de outro personagem no texto é:
a) Que horror, Matilda.
b) A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial.
c) tem que matar esses vagabundos.
d) Lá ninguém usa casimira.   
  
04. (Uerj 2014)  O conto de Moacyr Scliar adota a forma de uma carta, gênero que tem convenções específicas. Uma das marcas que permitem associar esse texto a uma carta é a presença de:
a) vocativo   
b) narrativa   
c) confissão   
d) argumentação   


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Gabarito:  

Resposta da questão 1: [B]
As orações “É uma idade respeitável, e não são muitos que chegam lá” suavizam a expressão da ideia seguinte, amenizam o choque que a indagação do narrador pode trazer a Matilda.  

Resposta da questão 2: [A]
Gradação é um aumento ou diminuição gradual, passo a passo. Na frase em destaque, de “contrariedade” a “indignação”, o grau de descontentamento é aumentado de um nível a outro.  

Resposta da questão 3: [C]
Tem que matar esses vagabundos” é uma fala de outro personagem reproduzida pelo narrador: o pai de Matilda.  

Resposta da questão 4: [A]
De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o vocativo pode ser definido como a “forma linguística (usualmente um substantivo) que expressa, no discurso direto, aquele a quem o emissor se dirige”. Desse modo, é muito comum nas cartas, e é representado no texto pela personagem “Matilda”, a quem o narrador/emissor se refere.  






2 comentários:

  1. Li todo o artigo e gostei muito. Sou um cidadão de 84 anos mas ainda tenho bom gosto, minhas roupas, vestimenta, Uso casimira inglesa.
    Gostei demais do artigo!Valeu.

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    1. Que legal! Fico feliz em saber que alguém tão elegante gostou da publicação. Muito obrigada!

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