Uma mulher - trinta e quatro, trinta e cinco anos, solteira, tímida, poucos amigos, morando sozinha - está um dia olhando os novos lançamentos numa livraria, pois seu maior prazer é a leitura, quando sente uma mão no seu braço e ouve uma voz de homem que diz:- Vamos?
Ela vira-se, já pronta para repelir o homem rispidamente, como faz com todos que ousam importuná-la, quando nota que o homem é cego. Fica sem saber o que dizer. O homem estranha o silêncio, aperta o seu braço e diz:
- Isabel?
E ela, sem saber por que, mas com a intuição de que a sua vida a partir daquele instante será outra, o coração batendo, diz: - Sim...- Vamos?
E ela, o coração batendo:
- Vamos.
O homem é mais moço do que ela. Bonito. Bem vestido. Bem cuidado. Deixa-se guiar por ela, fazendo perguntas sem muito interesse. Por que estão pegando um táxi e não o carro? Ela diz que perdeu a chave do carro na rua. Ele sorri e diz "Você..." Quando chegam no apartamento dela ele pergunta onde estão. Ela diz "Em casa..." e ele diz "Estranho..." Mas não diz mais nada. Nem quando ela faz ele sentar numa poltrona que certamente não é a favorita dele. Nem quando tira os seus sapatos, e afaga sua cabeça, e pergunta se ele quer alguma coisa antes do jantar. Só quando ela pergunta o que ele quer que ela faça para o jantar, diz:
- Você vai cozinhar?
-Vou.
- E a cozinheira?
- Despedi.
Ele parece não se interessar muito. Perde-se dentro do apartamento à procura do quarto, pois quer trocar de roupa. Ela o guia de volta à cadeira. Diz que é para ele ficar quieto, deixar tudo com ela. E para si mesma diz: amanhã preciso comprar umas roupas pra ele. Ela capricha no jantar, que ele come em silêncio.
Ele não comenta que a voz dela está diferente. Não acha mais nada estranho. Só na cama, quando ela o abraça, e guia a mão dele pelo seu corpo, ele começa a dizer:
- Sabe...
Mas ela cobre a boca dele com a sua.
Era uma mulher solitária, nunca tivera ninguém para cuidar. E agora tinha um homem em casa. Um homem que precisava dela, que não podia fazer nada sem ela. Um homem que não podia ver o seu rosto.
Cuidava dele, tinha certeza, melhor do que a mulher de verdade. Dava banho nele. Vestia-o com a roupa que ela escolhia e comprava. E à noite, na cama, amava-o como, tinha certeza, nenhuma mulher jamais o amara.
Ela se perguntava se ele realmente acreditava que ela era a mulher dele. A voz. Não desconfiava da voz? E da súbita mudança de vida? O desaparecimento de amigos, do resto da família... Mas como saber que vida ele levava com a outra?
Convenceu-se que ele sabia que se enganara, aquele dia, na livraria, sabia que estava vivendo com outra mulher, mas que preferia assim. Até que uma noite, na cama, depois de se amarem como todas as noites, ele de repente perguntou:
- Você é mesmo a Isabel?
Ela hesitou. Se dissesse "não" podia ouvir dele a frase "Eu sabia", e a confissão que preferia assim, e que a amava apesar dela ter-se passado pela outra, e mantê-lo preso naquele apartamento. Mas também podia perdê-l o para sempre. Não arriscou. Respondeu:
- Claro que sou. Que pergunta!
Na manhã seguinte, quando ela acordou, ele não estava do seu lado na cama. Ela o encontrou na cozinha, morto. Tinha cortado os pulsos com a faca do pão.
Foi difícil explicar por que ela sabia tão pouco daquele homem que vivia com ela e se matara na sua cozinha. Só sabia mesmo o que estava na sua carteira. Foi a própria polícia que, dias depois, contou a ela tudo que ela não sabia. O homem ficara cego ainda em criança. Perdera os pais. Vivia sozinho com a irmã.
- E a mulher - corrigiu ela, ainda zonza. Não conseguia pensar direito desde que descobrira o corpo na cozinha.
- Não, não. Nunca casou. Viviam sozinhos, ele e a irmã. Ele tinha desaparecido. Se perdeu dela numa livraria e a irmã
estava preocupadíssima.
-Irmã?
- É. Isabel.
Disponível em: http://bloguedogordo.blogspot.com.br/2009/06/apontamentos-para-uma-historia-de.html
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