O trecho a seguir faz parte do livro "Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos", de Ana Paula Maia, escritora contemporânea brasileira. Esse livro traz o cotidiano de pessoas que vivem no limite entre o humano e o animal. E, aqui abaixo, está um pouco da vida de Erasmo Wagner, muitas vezes confundido com os dejetos com os quais trabalha diariamente.
O lixo está por todo lugar e é de várias espécies: atômico,
espacial, especial, hospitalar, industrial, radioativo, orgânico e inorgânico;
mas Erasmo Wagner só conhece uma espécie de lixo. Aquele que é jogado pra fora
de casa. A imundície, o podre, o azedo e o estragado. O que não presta pra mais
ninguém. E serve apenas para os urubus, ratos, cães, e pra gente como ele.
Costuma trabalhar no caminhão de lixo parte do dia, com escalas alternadas no
turno da noite. Conhece o conteúdo de alguns sacos só pelo cheiro, formato e
peso. Já teve tétano. Já teve tuberculose. Já foi mordido por rato e bicado por
urubu. Conhece a peste, o espanto e o horror; por isso é ideal para a profissão
que exerce.
Revende em casa aquilo que acha em bom estado: Colchão, estrado de
cama, vaso sanitário, portas, armários, grades, cofres, cadeiras, canos e o que
mais puder ser aproveitado. Lucra metade de seu salário com a venda do lixo.
Não pensa nos miseráveis dos aterros sanitários que também
poderiam lucrar com o que há de melhor no lixo. Ele realmente não se importa.
Assim, como quem está acima dele, não se importa também. Na escala decrescente
de famintos e degenerados, ele ocupa um posto pouco acima dos miseráveis. É
como levar um tiro de raspão.
No itinerário de Erasmo Wagner, são recolhidas mais de vinte
toneladas de lixo por dia. A riqueza de uma sociedade pode ser medida pela sua
produção de lixo. Vinte toneladas num itinerário consideravelmente pequeno, o
faz pensar no tanto que se gasta. No tanto que se transforma em lixo. Mas tudo
vira lixo, inclusive ele é um lixo para muitas pessoas, até para os ratos e
urubus que insistem em atacá-lo. Mas não liga, esses agem por instinto. Sentem
seu cheiro podre e avançam. Os outros, seus semelhantes, não avançam, eles
recuam para longe. Como fazem com os detritos que jogam pra fora de casa, os
restos contaminados. O seu cheiro afasta as pessoas para bem longe.
Sua vida não é um lixo. Sua vida é muito lixo. Seu olfato está
impregnado com o aroma do podre. Seu cheiro é azedo, suas unhas imundas e sua
barba crespa e falhada é suja. Ninguém gosta muito de Erasmo Wagner. Dão
meia-volta quando está trabalhando e ele prefere assim. Prefere os urubus, os
ratos e a imundície, porque isso ele conhece. Isso o sustenta. As pessoas em
geral, lhe dão náusea e muita vontade de vomitar.
Sua namorada, a Suzete, não se importa. Suzete é faxineira de
banheiro público. Ela cheira a mijo, bosta e pinho.
"Como assim estenderam o itinerário?" grita Erasmo
Wagner ensopado de chuva para o motorista do caminhão.
"A gente tem que cobrir mais dois quarteirões" responde
o homem.
"Mas por quê?"
"O outro caminhão quebrou no meio da coleta. A gente precisa
terminar o serviço deles."
Erasmo Wagner não gosta de fazer o trabalho sujo dos outros. Joga
mais dois sacos na caçamba do caminhão, aciona o compactador de lixo e em
seguida sobe no estribo do caminhão agarrando-se a uma barra de ferro. Ele já
está bem acostumado a se segurar ali. De pé, mesmo em curvas fechadas, consegue
cochilar.
"A gente recolhe o lixo extra, mas não vai receber mais por
isso, né?" pergunta Valtair, o trabalhador novato.
"Pode apostar que não. A gente tinha que ganhar por tonelada
que recolhe. E o pior é que sempre tem um lixo extra."
O caminhão barulhento pára a cinco quadras dali e iniciam a coleta
do lixo extra.
"Não gosto de rua de gente rica" diz Erasmo Wagner.
"Tem muito mais lixo."
"Eles têm mais dinheiro pra gastar, é isso" responde
Valtair.
A chuva engrossou nos últimos minutos. O tempo escureceu. No meio
da tarde, eles avistam trevas. Vestem uma capa preta de plástico. Parecem
mercadores da morte recolhendo sacos pretos e despejando conteúdos nojentos de
latões de lixo direto no compactador de lixo, ou como eles chamam, na boca da
“esmagadora”.
"Dinheiro sempre vira lixo. Lixo e bosta" diz Erasmo
Wagner. "Meu primo Edivardes trabalha desentupindo esgoto. Isso sim é um
trabalho de merda. Você precisa ver o esgoto das áreas mais ricas. É uma bosta
densa, ele diz."
Erasmo Wagner corre para apanhar um saco de lixo grande que caiu
na rua. Chuta um vira-lata que abocanhou uma cabeça de galinha. O bicho foge
grunhindo sem largar o pedaço de carne podre. Joga o saco na caçamba do
caminhão.
"Bosta pesada?" pergunta Valtair rolando um latão.
"Isso. É merda concentrada. Comida boa faz isso. Merda de
pobre é rala e aguada. O Edivardes conhece a pessoa pela merda que produz.
Ninguém engana ele não. Ele sabe das coisas."
Eles correm de um lado para o outro recolhendo sacos grandes e
pequenos. Disputam a chutes com os cachorros, o lixo que precisam recolher, e a
tapas, com os mendigos que buscam o que comer. Valtair espera que um mendigo
termine de vasculhar um dos sacos de lixo. Erasmo Wagner puxa o saco e joga no
caminhão. Valtair sente-se desolado.
"Daqui a uma semana, você vai tratar todo mundo igual.
Cachorros e mendigos" diz Erasmo Wagner. "O cheiro podre faz isso.
Daqui a um tempo você só vai sentir esse cheiro."
Saiba mais sobre Ana Paula Maia e leia esse e outros trechos no blog da autora:
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